Os Titãs do Porto de Leixões
MEMÓRIA COLOSSAL
texto: Joel Cleto e Suzana Faro (in O Comércio do Porto. Revista Domingo, Porto, 26 de Novembro 2000, p.19-22.)
Tal como o antigo porto de Rodes, que possuía à entrada uma gigantesca estátua em bronze de Apolo (uma das famosas sete maravilhas do Mundo Antigo), também o porto de Leixões possui os seus “colossos” metálicos. São dois. Um em cada molhe. Únicos no mundo, os “titãs” são dois monumentais guindastes que documentam de forma privilegiada a época da arquitectura do ferro e da energia a vapor. São igualmente testemunhas fulcrais da própria edificação do porto – a maior obra de engenharia realizada em Portugal no século XIX. Foi, afinal, graças à sua força e à sua avançada decidida sobre o mar que os molhes de Leixões foram finalmente construídos no término de oitocentos, depois de séculos de sonhos e utopias.
13 de Julho de 1884. Depois de séculos de projectos, indefinições, sonhos, entraves e utopias, iniciava-se a construção do porto artificial de Leixões - aquela que é, muito provavelmente, a maior obra de engenharia realizada em Portugal no século XIX. Projectado pelo engenheiro Nogueira Soares, o porto foi construído pela empresa francesa “Dauderni et Duparchy” que havia vencido o concurso internacional (foi a única a concorrer!), com um valor de adjudicação traduzido na, para a época, fabulosa quantia de 4 milhões e 489 mil reis. E, não obstante a complexidade de que se revestiria a edificação desta estrutura portuária, os prazos foram cumpridos: após a entrega provisória em 1892, a definitiva deu-se em 1895. Na base do sucesso destas obras encontram-se vários factores. Dois deles, no entanto, são incontornáveis: a dupla dos gigantescos guindastes movidos a vapor – os “titãs” – que, bloco após bloco, foram erigindo sobre o fundo marinho e rochoso os molhes que definiram o porto artificial. Mas já lá vamos...
Havia muitos séculos que as más condições de navegabilidade do porto do Douro vinham demonstrando a necessidade da construção de um porto alternativo. A entrada na barra era muito perigosa, repleta que estava de múltiplos, inesperados e traiçoeiros penedos, muitos dos quais só ligeiramente encobertos pelas águas, provocando contínuos e trágicos naufrágios. O facto do Douro ser, igualmente, um rio de cíclicas e grandes cheias, impedia também a sua navegabilidade durante largos períodos. Por outro lado, nas épocas restantes, era o crescente assoreamento da barra que dificultava a passagem das embarcações. A tudo isto acrescia um progressivo e significativo aumento do calado dos navios.
A situação vai-se tornando, com efeito, incomportável, como nos dá conta o relatório elaborado por John Rennie que, em Junho de 1855, refere: “(...) os perigos existentes e as perdas de vida que tinha havido, bem como os prejuízos que tinha sofrido o comércio pela dificuldade na entrada da barra, que no inverno e começo da primavera estava fechada às vezes por semanas e meses seguidos, tendo-se dado casos de um navio fazer viagem de ida e volta ao Brasil, enquanto outro esperava fora da barra que se lhe oferecesse ensejo de entrar no porto. No próprio verão, o mar às vezes não deixava comunicar os navios com o interior do porto.”
A solução passava, pois, por um porto alternativo que se localizasse muito próximo da cidade do Porto. E, nesta perspectiva, era mais do que evidente que a foz do rio Leça deveria ser a solução. Com efeito, desde a mais recuada Antiguidade que não escapava à argúcia dos homens as condições privilegiadas da foz e do estuário daquele rio como abrigo natural, graças à existência, muito próximo da costa, de um grande número de rochedos que, descrevendo um semi-círculo no mar, formavam como que um porto natural. Ao abrigo desse conjunto de rochedos, a que os homens deram o nome de leixões, recorreram múltiplas embarcações desde tempos imemoriais. Porque, como já escrevia em 1737 António Cerqueira Pinto, “estando (...) metidos ao mar huns escabrosos penhascos, a que chama Leixoens o vulgo; por mais que as tempestades embravecidas ostentem nelles com encapellada inchação e horrorosos deliquios, nunca neles se vio haver naufragio, antes sim seguro asylo a toda a embarcação, que de proposito encaminha o rumo a este surgidouro admiravel, para salvar-se de todo”. E a verdade é que, ao longo dos séculos, este porto de abrigo natural terá salvo a vida de milhares de marítimos, mareantes, passageiros e pescadores porque, nas palavras de Marino Franzini em 1812, “talvez seja este o único ponto desta costa que oferece algum abrigo às embarcações acossadas pela travessia; e, em todo o caso, é a única paragem onde as equipagens podem ter esperanças de salvação quando seja inevitável encalhar.”
Desde muito cedo que se compreendeu, também, que estas condições naturais de abrigo da foz do Leça poderiam ser reforçadas através da intervenção humana. Isto porque, citando o depoimento do Pde. Luís Cardoso nas “Memórias Paroquiais” de 1758, “dizem os engenheyros que se pode edificar hum cáys para ir a pé enxuto ao dito penhasco grande chamado Leixoens edificar hua boa Fortaleza para defesa de hum surgidouro excelente de grande quantidade de Navios, muyto util para todo o tempo, muito mais para o em que não podem entrar (n)a Barra do Porto, por seus continuos perigos.”
De facto os estudos e projectos vão-se multiplicando desde meados do século XVI, mas com particular incidência nos séculos XVIII e XIX. Mas não foi facilmente que se convenceu a burguesia mercantil do Porto e o poder central a avançar com esta obra. Foram precisos muitos naufrágios, grandes tragédias e inúmeros prejuízos para que, finalmente, em 1852, após o célebre naufrágio do “Porto” se decidisse avançar definitivamente com soluções para o problema da segurança da navegabilidade do Douro. Entre as propostas surge uma vez mais, como é óbvio, a ideia da construção de um porto artificial em Leixões. Devem-se aos ingleses Freebody e Rennie, em 1855, os primeiros grandes projectos para o local. Outros se seguirão, como os de Manuel Afonso Espregueira em 1865, Joaquim Nogueira Soares em 1878, ou os de John Coode em 1881.
Finalmente, em 1883, o ministro das Obras Públicas, Hintze Ribeiro, apresenta na Câmara dos Deputados a proposta de Lei autorizando o Governo a adjudicar a construção do porto de Leixões e a responsabilizar pela elaboração do projecto definitivo o engenheiro Nogueira Soares.
A construção do porto artificial consistiu, fundamentalmente, na formação de uma grande enseada, com cerca de 95 hectares, definida pela construção de dois extensos paredões ou molhes, o do lado norte com 1.579 metros e o do lado sul com 1.147. Além destes paredões foi também construído, no extremo do molhe norte, um quebra-mar que, elevando-se apenas um metro acima do zero hidrográfico, prolongava em mais algumas centenas de metros aquele paredão.
Entretanto o nome do porto resultou do facto do assentamento destes molhes se ter feito, preferencialmente, sobre os diversos leixões que, como já referimos, ao largo constituíam desde há muito o porto de abrigo natural. Para a construção dos molhes artificiais, foi utilizado o granito de pedreiras próximas, a mais importante das quais foi a do Monte S. Gens (Custóias) que se viu ligada a Leixões por uma linha de caminho de ferro, com cerca de sete quilómetros de extensão, construída expressamente para esse fim.
Após a chegada das pedras aos estaleiros e oficinas, montados em Matosinhos (para apoio à edificação do molhe sul) e Leça da Palmeira (para o molhe norte), estas eram então trabalhadas e conglomeradas dando origem aos enormes blocos graníticos que formariam os paredões e que chegavam a atingir as 50 toneladas. Tal peso, embora pouco prático para o manuseamento deste blocos na obra, era a garantia da futura estabilidade e resistência dos molhes à ferocidade do mar. Mas era, de facto, um problema. Como proceder para transportar, erguer e posteriormente depositar no local desejado os pesadíssimos blocos graníticos?
Para um grande problema só uma solução titânica.
Com efeito, para resolver esta questão a empresa construtora, a “Dauderni & Duparchi”, encomendou às famosas oficinas francesas “Fives”, em Lille, dois gigantescos e poderosos guindastes de ferro movidos a vapor que se deslocavam, igualmente, sobre carris. Guindastes que, pelo seu aspecto colossal, de imediato foram baptizados por “titãs”.
Montados em Leixões e dirigidos durante os primeiros anos exclusivamente pelo técnico francês Lecrit, estes potentes guindastes revelaram-se efectivamente como peças fundamentais na construção do porto. Foi graças à sua acção que os dois molhes foram paulatinamente, bloco após bloco, avançando mar adentro. Movidos a vapor (ainda hoje é possível descortinar no seu topo a “casa das máquinas”, com as respectivas caldeiras), os titãs foram, com efeito, utilizados na construção do próprio porto não se tratando, ao contrário do que muita gente pensa, de guindastes para carga e descarga, embora tenham posteriormente desempenhado também essas funções (o do molhe sul pelo menos até aos anos ’60 do século XX).
Após a edificação dos molhes os titãs continuaram a ser utilizados na reparações dos paredões, na sequência de danos provocados pela acção tempestuosa do mar. De resto, o titã do molhe norte foi, também ele, protagonista de um fortíssimo temporal ocorrido na noite de 22 para 23 de Dezembro de 1892, caindo ao mar. Sobre esse acontecimento reflectiu Alberto Pimentel em 1893: “Não se doma facilmente o oceano, não se modifica, sem ter que vencer grandes dificuldades, a obra expontânea da natureza. Mas a ciência, a engenharia hidráulica, confiada nos seus poderosos recursos, ia encetar a luta com o oceano e estava certa de vencê-lo, não sem violentas refregas e frequentes conflitos com tão valoroso adversário. Por sua parte, o mar revirava o dente à hidráulica, procurava reaver o terreno que a ciência lhe conquistava, e, apesar de ficar vencido na luta, ainda não está resignado com a derrota, ainda de vez em quando, como aconteceu o ano passado, se arremessa em fúria contra o porto de Leixões para desfazê-lo”.
Só mais de três anos depois, na Primavera de 1896, e depois de muitos estudos e esforços, se consegue recuperar o titã do fundo marinho, com o auxílio de potentes macacos mecânicos assentes em barcaças. Rapidamente recuperado o gigantesco guindaste retomará a sua actividade.
A auxiliar desde cedo os titãs encontrava-se um outro interessante mecanismo igualmente movido a vapor: o aparelho para suspender blocos, popularmente designado por “caranguejeira”. Era esta máquina que transportava um a um e através de carris os blocos desde os estaleiros montados em terra até aos vagões que se deslocavam posteriormente para junto dos titãs, na sua avançada decidida sobre o mar.
Independentemente do significado de que os titãs se revestem hoje para a história de Leixões e de toda a região, eles possuem importância acrescida pelo seu valor como testemunhas privilegiadas da era industrial e da arquitectura/maquinaria do ferro. Importância tanto maior quanto o facto de, aparentemente, se tratarem de exemplares únicos no mundo. De facto, se é verdade que os dois titãs de Leixões tiveram outros irmãos, não é menos verdade que, nos outros casos, concluídas as construções portuárias esses gigantes de ferro foram desmantelados. E quando isso não aconteceu, nomeadamente na Europa, a primeira e a segunda guerras mundiais encarregaram-se do desmantelamento tendo em conta que, desde muito cedo, os portos marítimos foram alvos prioritários de bombardeamento.
Sabemos da existência de mais titãs, como é o caso dos de Glasgow (Escócia), ou de outros na Nova Zelândia, na Argélia e em alguns portos sul-americanos. São, no entanto, de dimensões e potência inferiores, incapazes de erguer à força do vapor e da resistência do ferro as 50 toneladas que os titãs de Leixões levantavam.
A importância patrimonial destes guindastes já ultrapassa, pois, as nossas fronteiras, justificando-se assim o facto de nos últimos anos por diversas vezes se ter aventado a hipótese da sua classificação mundial como “International Mechanical Engineering Historic Landemark”, galardão que foi já atribuído à ponte Dona Maria sobre o Douro.
A história do porto de Leixões não se esgota, obviamente, nos titãs e na construção dos seus molhes no final do século XIX. Ao longo de todo o século XX esta estrutura portuária continuou a crescer com a abertura de sucessivas docas terra adentro e alterando radicalmente a fisionomia do estuário do Leça e as velhas margens ribeirinhas de Leça da Palmeira e Matosinhos. Mas essa é já uma outra história...
Quanto aos gigantescos guindastes que nos motivaram para esta “Viagem no Tempo”, eles permanecem e resistem sobre os molhes que construíram, quais duas titânicas estátuas erigidas à memória dos tempos pioneiros da construção do porto. A importância crucial que possuíram no contexto da edificação desta estrutura portuária, a sua imponência e força, o valor simbólico que, ao longo de mais de um século, criaram em torno de si, e a sua importância patrimonial como monumentos únicos no mundo fazem deles os “colossos” de Leixões.
Como chegar
Estrutura económica e portuária fundamental do país, o Porto de Leixões localiza-se dois quilómetros a norte da cidade do Porto, na antiga foz e estuário do rio Leça. Completamente envolvido pelas duas freguesias que constituem a cidade de Matosinhos – Leça da Palmeira na margem norte e Matosinhos na margem sul – a Leixões acede-se com grande facilidade pelas antigas avenidas litorais do Porto e Matosinhos ou pelas grandes e velozes (se não for em hora de ponta) vias estruturantes que vêm surgindo nas últimas décadas nesta região.
Como ver
Contemplar de longe os titãs não é difícil. Da praia de Matosinhos ou da de Leça da Palmeira é fácil vislumbrar a silhueta inconfundível dos velhos e gigantescos titãs que, estáticos, repousam hoje a meio de cada um dos molhes que construíram.
Uma visão mais aproximada, embora menos fácil, é também possível. Não nos podemos esquecer que os titãs se encontram no interior de um grande porto comercial, com todos os problemas de controlo alfandegário, fronteiriço, de segurança e administrativo que uma estrutura deste tipo acarreta, nomeadamente para quem, despreocupadamente, deseje apenas penetrar no seu interior para uma simples visita a um velho guindaste. Por todos estes motivos, e porque se encontra igualmente junto a uma das zonas mais sensíveis do porto (o terminal de petroleiros e uma área habitualmente utilizada pela Marinha de guerra) desaconselha-se a visita ao titã do molhe norte (Leça da Palmeira). No entanto, se se deslocar até à marina das embarcações desportiva poderá contemplar mais de perto este velha relíquia industrial.
Quanto ao titã do molhe sul (Matosinhos) que é, de resto, o que se encontra melhor conservado, a sua visita é já mais facilitada. Aconselha-se, no entanto, que o leitor proceda a alguns contactos prévios já que não basta dirigir-se à entrada do molhe, localizada junto à praia de Matosinhos. Para que os responsáveis pela segurança o deixem por aí penetrar e assim aceder ao titã é, de facto, necessária uma autorização. Para a conseguir deverá o leitor atempadamente contactar as Relações Públicas da APDL –Administração dos Portos do Douro e Leixões (tel. 22 995 3000) explicitando os motivos e razões da sua visita.
Por motivos de segurança é igualmente proibido subir à casa das máquinas do velho guindaste.
Que comer
Sendo Leixões um dos maiores portos sardinheiros do mundo, facilmente se compreenderá que a nossa sugestão vá para este peixe. Matosinhos e Leça da Palmeira são, justificadamente, conhecidas como a “sala de jantar” do Porto e, por isso, a oferta é imensa e para todos os gostos e carteiras. Mas lá lhe vamos lembrando que, nas cercanias do porto de Leixões, bem perto da lota, na esquina entre a Rua do Sul e a Avenida Serpa Pinto, pode encontrar o “Rei da Sardinha Assada”, uma acolhedora tasca onde se pode deliciar, por um preço muito apetecível, com alguma da melhor sardinha na brasa de Matosinhos. Uma casa de pasto onde a sardinha assada é igualmente de comer e chorar por mais é a “Casa Serrão”, na Rua Heróis de França, relativamente perto da entrada do molhe sul do porto de Leixões. Aqui, e como acompanhamento, não pode o leitor falhar as “batatas a murro”.
Se, no entanto, não lhe apetece sardinhas e está desejoso de um ambiente mais calmo e seleccionado, o pretexto dos “titãs” e da energia que os fazia mover, fazem-nos remeter, já em Leça da Palmeira, mas ainda voltados para o porto de Leixões, para o “A todo o vapor”.
MEMÓRIA COLOSSAL
texto: Joel Cleto e Suzana Faro (in O Comércio do Porto. Revista Domingo, Porto, 26 de Novembro 2000, p.19-22.)
Tal como o antigo porto de Rodes, que possuía à entrada uma gigantesca estátua em bronze de Apolo (uma das famosas sete maravilhas do Mundo Antigo), também o porto de Leixões possui os seus “colossos” metálicos. São dois. Um em cada molhe. Únicos no mundo, os “titãs” são dois monumentais guindastes que documentam de forma privilegiada a época da arquitectura do ferro e da energia a vapor. São igualmente testemunhas fulcrais da própria edificação do porto – a maior obra de engenharia realizada em Portugal no século XIX. Foi, afinal, graças à sua força e à sua avançada decidida sobre o mar que os molhes de Leixões foram finalmente construídos no término de oitocentos, depois de séculos de sonhos e utopias.
13 de Julho de 1884. Depois de séculos de projectos, indefinições, sonhos, entraves e utopias, iniciava-se a construção do porto artificial de Leixões - aquela que é, muito provavelmente, a maior obra de engenharia realizada em Portugal no século XIX. Projectado pelo engenheiro Nogueira Soares, o porto foi construído pela empresa francesa “Dauderni et Duparchy” que havia vencido o concurso internacional (foi a única a concorrer!), com um valor de adjudicação traduzido na, para a época, fabulosa quantia de 4 milhões e 489 mil reis. E, não obstante a complexidade de que se revestiria a edificação desta estrutura portuária, os prazos foram cumpridos: após a entrega provisória em 1892, a definitiva deu-se em 1895. Na base do sucesso destas obras encontram-se vários factores. Dois deles, no entanto, são incontornáveis: a dupla dos gigantescos guindastes movidos a vapor – os “titãs” – que, bloco após bloco, foram erigindo sobre o fundo marinho e rochoso os molhes que definiram o porto artificial. Mas já lá vamos...
Havia muitos séculos que as más condições de navegabilidade do porto do Douro vinham demonstrando a necessidade da construção de um porto alternativo. A entrada na barra era muito perigosa, repleta que estava de múltiplos, inesperados e traiçoeiros penedos, muitos dos quais só ligeiramente encobertos pelas águas, provocando contínuos e trágicos naufrágios. O facto do Douro ser, igualmente, um rio de cíclicas e grandes cheias, impedia também a sua navegabilidade durante largos períodos. Por outro lado, nas épocas restantes, era o crescente assoreamento da barra que dificultava a passagem das embarcações. A tudo isto acrescia um progressivo e significativo aumento do calado dos navios.
A situação vai-se tornando, com efeito, incomportável, como nos dá conta o relatório elaborado por John Rennie que, em Junho de 1855, refere: “(...) os perigos existentes e as perdas de vida que tinha havido, bem como os prejuízos que tinha sofrido o comércio pela dificuldade na entrada da barra, que no inverno e começo da primavera estava fechada às vezes por semanas e meses seguidos, tendo-se dado casos de um navio fazer viagem de ida e volta ao Brasil, enquanto outro esperava fora da barra que se lhe oferecesse ensejo de entrar no porto. No próprio verão, o mar às vezes não deixava comunicar os navios com o interior do porto.”
A solução passava, pois, por um porto alternativo que se localizasse muito próximo da cidade do Porto. E, nesta perspectiva, era mais do que evidente que a foz do rio Leça deveria ser a solução. Com efeito, desde a mais recuada Antiguidade que não escapava à argúcia dos homens as condições privilegiadas da foz e do estuário daquele rio como abrigo natural, graças à existência, muito próximo da costa, de um grande número de rochedos que, descrevendo um semi-círculo no mar, formavam como que um porto natural. Ao abrigo desse conjunto de rochedos, a que os homens deram o nome de leixões, recorreram múltiplas embarcações desde tempos imemoriais. Porque, como já escrevia em 1737 António Cerqueira Pinto, “estando (...) metidos ao mar huns escabrosos penhascos, a que chama Leixoens o vulgo; por mais que as tempestades embravecidas ostentem nelles com encapellada inchação e horrorosos deliquios, nunca neles se vio haver naufragio, antes sim seguro asylo a toda a embarcação, que de proposito encaminha o rumo a este surgidouro admiravel, para salvar-se de todo”. E a verdade é que, ao longo dos séculos, este porto de abrigo natural terá salvo a vida de milhares de marítimos, mareantes, passageiros e pescadores porque, nas palavras de Marino Franzini em 1812, “talvez seja este o único ponto desta costa que oferece algum abrigo às embarcações acossadas pela travessia; e, em todo o caso, é a única paragem onde as equipagens podem ter esperanças de salvação quando seja inevitável encalhar.”
Desde muito cedo que se compreendeu, também, que estas condições naturais de abrigo da foz do Leça poderiam ser reforçadas através da intervenção humana. Isto porque, citando o depoimento do Pde. Luís Cardoso nas “Memórias Paroquiais” de 1758, “dizem os engenheyros que se pode edificar hum cáys para ir a pé enxuto ao dito penhasco grande chamado Leixoens edificar hua boa Fortaleza para defesa de hum surgidouro excelente de grande quantidade de Navios, muyto util para todo o tempo, muito mais para o em que não podem entrar (n)a Barra do Porto, por seus continuos perigos.”
De facto os estudos e projectos vão-se multiplicando desde meados do século XVI, mas com particular incidência nos séculos XVIII e XIX. Mas não foi facilmente que se convenceu a burguesia mercantil do Porto e o poder central a avançar com esta obra. Foram precisos muitos naufrágios, grandes tragédias e inúmeros prejuízos para que, finalmente, em 1852, após o célebre naufrágio do “Porto” se decidisse avançar definitivamente com soluções para o problema da segurança da navegabilidade do Douro. Entre as propostas surge uma vez mais, como é óbvio, a ideia da construção de um porto artificial em Leixões. Devem-se aos ingleses Freebody e Rennie, em 1855, os primeiros grandes projectos para o local. Outros se seguirão, como os de Manuel Afonso Espregueira em 1865, Joaquim Nogueira Soares em 1878, ou os de John Coode em 1881.
Finalmente, em 1883, o ministro das Obras Públicas, Hintze Ribeiro, apresenta na Câmara dos Deputados a proposta de Lei autorizando o Governo a adjudicar a construção do porto de Leixões e a responsabilizar pela elaboração do projecto definitivo o engenheiro Nogueira Soares.
A construção do porto artificial consistiu, fundamentalmente, na formação de uma grande enseada, com cerca de 95 hectares, definida pela construção de dois extensos paredões ou molhes, o do lado norte com 1.579 metros e o do lado sul com 1.147. Além destes paredões foi também construído, no extremo do molhe norte, um quebra-mar que, elevando-se apenas um metro acima do zero hidrográfico, prolongava em mais algumas centenas de metros aquele paredão.
Entretanto o nome do porto resultou do facto do assentamento destes molhes se ter feito, preferencialmente, sobre os diversos leixões que, como já referimos, ao largo constituíam desde há muito o porto de abrigo natural. Para a construção dos molhes artificiais, foi utilizado o granito de pedreiras próximas, a mais importante das quais foi a do Monte S. Gens (Custóias) que se viu ligada a Leixões por uma linha de caminho de ferro, com cerca de sete quilómetros de extensão, construída expressamente para esse fim.
Após a chegada das pedras aos estaleiros e oficinas, montados em Matosinhos (para apoio à edificação do molhe sul) e Leça da Palmeira (para o molhe norte), estas eram então trabalhadas e conglomeradas dando origem aos enormes blocos graníticos que formariam os paredões e que chegavam a atingir as 50 toneladas. Tal peso, embora pouco prático para o manuseamento deste blocos na obra, era a garantia da futura estabilidade e resistência dos molhes à ferocidade do mar. Mas era, de facto, um problema. Como proceder para transportar, erguer e posteriormente depositar no local desejado os pesadíssimos blocos graníticos?
Para um grande problema só uma solução titânica.
Com efeito, para resolver esta questão a empresa construtora, a “Dauderni & Duparchi”, encomendou às famosas oficinas francesas “Fives”, em Lille, dois gigantescos e poderosos guindastes de ferro movidos a vapor que se deslocavam, igualmente, sobre carris. Guindastes que, pelo seu aspecto colossal, de imediato foram baptizados por “titãs”.
Montados em Leixões e dirigidos durante os primeiros anos exclusivamente pelo técnico francês Lecrit, estes potentes guindastes revelaram-se efectivamente como peças fundamentais na construção do porto. Foi graças à sua acção que os dois molhes foram paulatinamente, bloco após bloco, avançando mar adentro. Movidos a vapor (ainda hoje é possível descortinar no seu topo a “casa das máquinas”, com as respectivas caldeiras), os titãs foram, com efeito, utilizados na construção do próprio porto não se tratando, ao contrário do que muita gente pensa, de guindastes para carga e descarga, embora tenham posteriormente desempenhado também essas funções (o do molhe sul pelo menos até aos anos ’60 do século XX).
Após a edificação dos molhes os titãs continuaram a ser utilizados na reparações dos paredões, na sequência de danos provocados pela acção tempestuosa do mar. De resto, o titã do molhe norte foi, também ele, protagonista de um fortíssimo temporal ocorrido na noite de 22 para 23 de Dezembro de 1892, caindo ao mar. Sobre esse acontecimento reflectiu Alberto Pimentel em 1893: “Não se doma facilmente o oceano, não se modifica, sem ter que vencer grandes dificuldades, a obra expontânea da natureza. Mas a ciência, a engenharia hidráulica, confiada nos seus poderosos recursos, ia encetar a luta com o oceano e estava certa de vencê-lo, não sem violentas refregas e frequentes conflitos com tão valoroso adversário. Por sua parte, o mar revirava o dente à hidráulica, procurava reaver o terreno que a ciência lhe conquistava, e, apesar de ficar vencido na luta, ainda não está resignado com a derrota, ainda de vez em quando, como aconteceu o ano passado, se arremessa em fúria contra o porto de Leixões para desfazê-lo”.
Só mais de três anos depois, na Primavera de 1896, e depois de muitos estudos e esforços, se consegue recuperar o titã do fundo marinho, com o auxílio de potentes macacos mecânicos assentes em barcaças. Rapidamente recuperado o gigantesco guindaste retomará a sua actividade.
A auxiliar desde cedo os titãs encontrava-se um outro interessante mecanismo igualmente movido a vapor: o aparelho para suspender blocos, popularmente designado por “caranguejeira”. Era esta máquina que transportava um a um e através de carris os blocos desde os estaleiros montados em terra até aos vagões que se deslocavam posteriormente para junto dos titãs, na sua avançada decidida sobre o mar.
Independentemente do significado de que os titãs se revestem hoje para a história de Leixões e de toda a região, eles possuem importância acrescida pelo seu valor como testemunhas privilegiadas da era industrial e da arquitectura/maquinaria do ferro. Importância tanto maior quanto o facto de, aparentemente, se tratarem de exemplares únicos no mundo. De facto, se é verdade que os dois titãs de Leixões tiveram outros irmãos, não é menos verdade que, nos outros casos, concluídas as construções portuárias esses gigantes de ferro foram desmantelados. E quando isso não aconteceu, nomeadamente na Europa, a primeira e a segunda guerras mundiais encarregaram-se do desmantelamento tendo em conta que, desde muito cedo, os portos marítimos foram alvos prioritários de bombardeamento.
Sabemos da existência de mais titãs, como é o caso dos de Glasgow (Escócia), ou de outros na Nova Zelândia, na Argélia e em alguns portos sul-americanos. São, no entanto, de dimensões e potência inferiores, incapazes de erguer à força do vapor e da resistência do ferro as 50 toneladas que os titãs de Leixões levantavam.
A importância patrimonial destes guindastes já ultrapassa, pois, as nossas fronteiras, justificando-se assim o facto de nos últimos anos por diversas vezes se ter aventado a hipótese da sua classificação mundial como “International Mechanical Engineering Historic Landemark”, galardão que foi já atribuído à ponte Dona Maria sobre o Douro.
A história do porto de Leixões não se esgota, obviamente, nos titãs e na construção dos seus molhes no final do século XIX. Ao longo de todo o século XX esta estrutura portuária continuou a crescer com a abertura de sucessivas docas terra adentro e alterando radicalmente a fisionomia do estuário do Leça e as velhas margens ribeirinhas de Leça da Palmeira e Matosinhos. Mas essa é já uma outra história...
Quanto aos gigantescos guindastes que nos motivaram para esta “Viagem no Tempo”, eles permanecem e resistem sobre os molhes que construíram, quais duas titânicas estátuas erigidas à memória dos tempos pioneiros da construção do porto. A importância crucial que possuíram no contexto da edificação desta estrutura portuária, a sua imponência e força, o valor simbólico que, ao longo de mais de um século, criaram em torno de si, e a sua importância patrimonial como monumentos únicos no mundo fazem deles os “colossos” de Leixões.
Como chegar
Estrutura económica e portuária fundamental do país, o Porto de Leixões localiza-se dois quilómetros a norte da cidade do Porto, na antiga foz e estuário do rio Leça. Completamente envolvido pelas duas freguesias que constituem a cidade de Matosinhos – Leça da Palmeira na margem norte e Matosinhos na margem sul – a Leixões acede-se com grande facilidade pelas antigas avenidas litorais do Porto e Matosinhos ou pelas grandes e velozes (se não for em hora de ponta) vias estruturantes que vêm surgindo nas últimas décadas nesta região.
Como ver
Contemplar de longe os titãs não é difícil. Da praia de Matosinhos ou da de Leça da Palmeira é fácil vislumbrar a silhueta inconfundível dos velhos e gigantescos titãs que, estáticos, repousam hoje a meio de cada um dos molhes que construíram.
Uma visão mais aproximada, embora menos fácil, é também possível. Não nos podemos esquecer que os titãs se encontram no interior de um grande porto comercial, com todos os problemas de controlo alfandegário, fronteiriço, de segurança e administrativo que uma estrutura deste tipo acarreta, nomeadamente para quem, despreocupadamente, deseje apenas penetrar no seu interior para uma simples visita a um velho guindaste. Por todos estes motivos, e porque se encontra igualmente junto a uma das zonas mais sensíveis do porto (o terminal de petroleiros e uma área habitualmente utilizada pela Marinha de guerra) desaconselha-se a visita ao titã do molhe norte (Leça da Palmeira). No entanto, se se deslocar até à marina das embarcações desportiva poderá contemplar mais de perto este velha relíquia industrial.
Quanto ao titã do molhe sul (Matosinhos) que é, de resto, o que se encontra melhor conservado, a sua visita é já mais facilitada. Aconselha-se, no entanto, que o leitor proceda a alguns contactos prévios já que não basta dirigir-se à entrada do molhe, localizada junto à praia de Matosinhos. Para que os responsáveis pela segurança o deixem por aí penetrar e assim aceder ao titã é, de facto, necessária uma autorização. Para a conseguir deverá o leitor atempadamente contactar as Relações Públicas da APDL –Administração dos Portos do Douro e Leixões (tel. 22 995 3000) explicitando os motivos e razões da sua visita.
Por motivos de segurança é igualmente proibido subir à casa das máquinas do velho guindaste.
Que comer
Sendo Leixões um dos maiores portos sardinheiros do mundo, facilmente se compreenderá que a nossa sugestão vá para este peixe. Matosinhos e Leça da Palmeira são, justificadamente, conhecidas como a “sala de jantar” do Porto e, por isso, a oferta é imensa e para todos os gostos e carteiras. Mas lá lhe vamos lembrando que, nas cercanias do porto de Leixões, bem perto da lota, na esquina entre a Rua do Sul e a Avenida Serpa Pinto, pode encontrar o “Rei da Sardinha Assada”, uma acolhedora tasca onde se pode deliciar, por um preço muito apetecível, com alguma da melhor sardinha na brasa de Matosinhos. Uma casa de pasto onde a sardinha assada é igualmente de comer e chorar por mais é a “Casa Serrão”, na Rua Heróis de França, relativamente perto da entrada do molhe sul do porto de Leixões. Aqui, e como acompanhamento, não pode o leitor falhar as “batatas a murro”.
Se, no entanto, não lhe apetece sardinhas e está desejoso de um ambiente mais calmo e seleccionado, o pretexto dos “titãs” e da energia que os fazia mover, fazem-nos remeter, já em Leça da Palmeira, mas ainda voltados para o porto de Leixões, para o “A todo o vapor”.
1 comentário:
Olá Caro José Modesto
Os meus sinceros parabéns pelo teu excelente Blogue, que passarei a ver com mais assiduidade. Continua em frente.
Como curiosidade posso-te dizer que o Titan do Molhe Sul, já movimentou contentores em navios convencionais, pelo menos do Garland/Vesselmar. O navio tinha que ficar desviado da muralha cerca de 10 metros devido à lança ser bastante longa e utilizava-se estropos de arame, além da movimentação ser muito morosa, mas que era perigoso era. Uma certa ocasião no navio Nieuwland, o contentor tombou e os estivadores portaló por pouco que não se atiraram à água. Eram outros tempos, hoje é uma maravilha e é cada bisarma de porta-contentores, que entra em Leixões, que metiam o Commodore Enterprise no porão.
Um abraço
Rui Picarote Amaro
Enviar um comentário